sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Zizek: o casamento entre democracia e capitalismo acabou

O filósofo e escritor esloveno Slavoj Zizek visitou a acampamento do
movimento Ocupar Wall Street, no parque Zuccotti, em Nova York e falou
aos manifestantes. “Estamos testemunhando como o sistema está se
autodestruindo. "Quando criticarem o capitalismo, não se deixem
chantagear pelos que vos acusam de ser contra a democracia. O casamento
entre a democracia e o capitalismo acabou".

O pronunciamendo de Zizek foi publicado por Carta Maior, 11-10-2011.

Ei-lo.

Durante o crash financeiro de 2008, foi destruída mais propriedade
privada, ganha com dificuldades, do que se todos nós aqui estivéssemos a
destruí-la dia e noite durante semanas. Dizem que somos sonhadores, mas
os verdadeiros sonhadores são aqueles que pensam que as coisas podem
continuar indefinidamente da mesma forma.

Não somos sonhadores. Somos o despertar de um sonho que está se
transformando num pesadelo. Não estamos destruindo coisa alguma. Estamos
apenas testemunhando como o sistema está se autodestruindo.

Todos conhecemos a cena clássica do desenho animado: o coiote chega à
beira do precipício, e continua a andar, ignorando o fato de que não há
nada por baixo dele. Somente quando olha para baixo e toma consciência
de que não há nada, cai. É isto que estamos fazendo aqui.

Estamos a dizer aos rapazes de Wall Street: “hey, olhem para baixo!”

Em abril de 2011, o governo chinês proibiu, na TV, nos filmes e em
romances, todas as histórias que falassem em realidade alternativa ou
viagens no tempo. É um bom sinal para a China. Significa que as pessoas
ainda sonham com alternativas, e por isso é preciso proibir este sonho.
Aqui, não pensamos em proibições. Porque o sistema dominante tem
oprimido até a nossa capacidade de sonhar.

Vejam os filmes a que assistimos o tempo todo. É fácil imaginar o fim do
mundo, um asteróide destruir toda a vida e assim por diante. Mas não se
pode imaginar o fim do capitalismo. O que estamos, então, a fazer aqui?

Deixem-me contar uma piada maravilhosa dos velhos tempos comunistas. Um
fulano da Alemanha Oriental foi mandado para trabalhar na Sibéria. Ele
sabia que o seu correio seria lido pelos censores, por isso disse aos
amigos: “Vamos estabelecer um código. Se receberem uma carta minha
escrita em tinta azul, será verdade o que estiver escrito; se estiver
escrita em tinta vermelha, será falso”. Passado um mês, os amigos
recebem uma primeira carta toda escrita em tinta azul. Dizia: “Tudo é
maravilhoso aqui, as lojas estão cheias de boa comida, os cinemas exibem
bons filmes do ocidente, os apartamentos são grandes e luxuosos, a única
coisa que não se consegue comprar é tinta vermelha.”

É assim que vivemos – temos todas as liberdades que queremos, mas
falta-nos a tinta vermelha, a linguagem para articular a nossa ausência
de liberdade. A forma como nos ensinam a falar sobre a guerra, a
liberdade, o terrorismo e assim por diante, falsifica a liberdade. E é
isso que estamos a fazer aqui: dando tinta vermelha a todos nós.

Existe um perigo. Não nos apaixonemos por nós mesmos. É bom estar aqui,
mas lembrem-se, os carnavais são baratos. O que importa é o dia
seguinte, quando voltamos à vida normal. Haverá então novas
oportunidades? Não quero que se lembrem destes dias assim: “Meu deus,
como éramos jovens e foi lindo”.

Lembrem-se que a nossa mensagem principal é: temos de pensar em
alternativas. A regra quebrou-se. Não vivemos no melhor mundo possível,
mas há um longo caminho pela frente – estamos confrontados com questões
realmente difíceis. Sabemos o que não queremos. Mas o que queremos? Que
organização social pode substituir o capitalismo? Que tipo de novos
líderes queremos?

Lembrem-se, o problema não é a corrupção ou a ganância, o problema é o
sistema. Tenham cuidado, não só com os inimigos, mas também com os
falsos amigos que já estão trabalhando para diluir este processo, do
mesmo modo que quando se toma café sem cafeína, cerveja sem álcool,
sorvete sem gordura.

Vão tentar transformar isso num protesto moral sem coração, um processo
descafeinado. Mas o motivo de estarmos aqui é que já estamos fartos de
um mundo onde se reciclam latas de coca-cola ou se toma um cappuccino
italiano no Starbucks, para depois dar 1% às crianças que passam fome e
fazer-nos sentir bem com isso. Depois de fazer outsourcing ao trabalho e
à tortura, depois de as agências matrimoniais fazerem outsourcing da
nossa vida amorosa, permitimos que até o nosso envolvimento político
seja alvo de outsourcing. Queremos ele de volta.

Não somos comunistas, se o comunismo significa o sistema que entrou em
colapso em 1990. Lembrem-se que hoje os comunistas são os capitalistas
mais eficientes e implacáveis. Na China de hoje, temos um capitalismo
que é ainda mais dinâmico do que o vosso capitalismo americano. Mas ele
não precisa de democracia. O que significa que, quando criticarem o
capitalismo, não se deixem chantagear pelos que vos acusam de ser contra
a democracia. O casamento entre a democracia e o capitalismo acabou.

A mudança é possível. O que é que consideramos possível hoje? Basta
seguir os meios de comunicação. Por um lado, na tecnologia e na
sexualidade tudo parece ser possível. É possível viajar para a lua,
tornar-se imortal através da biogenética. Pode-se ter sexo com animais
ou qualquer outra coisa. Mas olhem para os terrenos da sociedade e da
economia. Nestes, quase tudo é considerado impossível. Querem aumentar
um pouco os impostos aos ricos? Eles dizem que é impossível. Perdemos
competitividade. Querem mais dinheiro para a saúde? Eles dizem que é
impossível, isso significaria um Estado totalitário. Algo tem de estar
errado num mundo onde vos prometem ser imortais, mas em que não se pode
gastar um pouco mais com cuidados de saúde.

Talvez devêssemos definir as nossas prioridades nesta questão. Não
queremos um padrão de vida mais alto – queremos um melhor padrão de
vida. O único sentido em que somos comunistas é que nos preocupamos com
os bens comuns. Os bens comuns da natureza, os bens comuns do que é
privatizado pela propriedade intelectual, os bens comuns da biogenética.
Por isto e só por isto devemos lutar.

O comunismo falhou totalmente, mas o problema dos bens comuns permanece.
Eles dizem-nos que não somos americanos, mas temos de lembrar uma coisa
aos fundamentalistas conservadores, que afirmam que eles é que são
realmente americanos. O que é o cristianismo? É o Espírito Santo. O que
é o Espírito Santo? É uma comunidade igualitária de crentes que estão
ligados pelo amor um pelo outro, e que só têm a sua própria liberdade e
responsabilidade para este amor. Neste sentido, o Espírito Santo está
aqui, agora, e lá em Wall Street estão os pagãos que adoram ídolos
blasfemos.

Por isso, do que precisamos é de paciência. A única coisa que eu temo é
que algum dia vamos todos voltar para casa, e vamos voltar a
encontrar-nos uma vez por ano, para beber cerveja e recordar
nostalgicamente como foi bom o tempo que passamos aqui. Prometam que não
vai ser assim. Sabem que muitas vezes as pessoas desejam uma coisa, mas
realmente não a querem. Não tenham medo de realmente querer o que
desejam. Muito obrigado.

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